O estranho familiar

Anaël Piageat, 2025




É a visão de um cotidiano extremamente banal, imperceptivelmente perturbado por um toque de estranheza que pode transformar toda a cena em uma visão de pesadelo. Uma natureza morta com um revólver, luvas e uma rosa pousados sobre uma mesa. Paula Siebra compôs uma das primeiras obras da exposiçāo como em um romance de Agatha Christie. Para ela, os romances policiais são como uma metáfora da pintura. Não pela intriga em si mas pelo prazer que temos em, como um cão de caça em torno de sua presa, compreender as características dos personagens, suas interações, o contexto no qual a história acontece. Esse gênero de investigação comporta algo de mágico, que se cristaliza intuitivamente, às vezes para além da linguagem. Como quando tentamos colocar palavras sobre pinturas.

Paula Siebra nasceu em Fortaleza, no estado do Ceará, no Nordeste do Brasil. Nessa região, ela cresceu. Ela conta que sempre desenhou, mas foi em um museu de arte popular, e não em um museu de belas artes, que o seu olhar se formou, no Dragão do Mar, onde sua mãe a levava aos domingos. Suas lembranças são embaladas pelas melodias melancólicas do choro, essa música tradicional que era tocada por sua família. Afinal, ela quase tomou essa direção ao invés da arte. Mas as imagens a capturaram e ela estudou pintura, na universidade, no Rio de Janeiro. As primeiras formas que a marcaram foram as cerâmicas, as rendas, os bordados de sua região natal, assim como as imagens simples dos ex-votos. Dentro dos primeiros livros de arte que ela descobriu, figuravam Frida Kahlo e Balthus.

Naturalmente, a exposição deve igualmente o seu título à Freud e a sua « inquietante estranheza », traduzida em outras palavras por François Roustang como « o estranho familiar », aquilo que é familiar e deve permanecer oculto. Tomemos como exemplo essa máscara pousada sobre uma cômoda, com uma gaveta abarrotada de cartas, uma garrafa pousada sobre uma toalha de mesa curiosamente amarrotada, como um vestígio de carnaval esquecido ali sem razão, um encontro objetivo digno de André Breton. Esse gosto pelo dia a dia, acompanhado de uma atração por uma forma de realismo mágico, emana igualmente da caixa de costura de sua mãe, com uma bola de alfinetes laranja e uma fita métrica mal enrolada, ou de uma mala bem arrumada. Longe de qualquer metáfora, esse espetáculo é simplesmente o signo de uma forma de zelo implementada para arrumar camisas listradas, uma pinça e uma escova de cabelos, um livro e sapatos em uma antiga mala em pele de crocodilo comprada em uma loja de antiguidades. Dentro da mala, há um livro - um romance escrito por um autor de sua região natal - com uma gravura em madeira enfeitando a capa. Ela o escolheu inspirada nessa imagem que lhe remete às técnicas vernaculares que lhe são familiares. Esses dominós? Sua presença se explica pelo fato de que é sempre bom tê-los durante uma viagem: com eles, fazemos amigos.

Um conjunto de paisagens acompanha essas cenas como cenários para narrações sem roteiro. Devemos nos deixar levar pelo prazer desse pintura contida. Sobre as pétalas aveludadas de uma planta, pérolas de água brilhantes traduzem o orvalho. Como pintar o orvalho? indaga-se Paula Siebra. Através de atmosferas. Em geral, seus assistentes preparam seus chassis utilizando materiais locais, pois ela recobre suas telas de um fundo ocre ou senão cinza, segundo as tonalidades coloridas que ela deseja produzir. Depois ela deposita inúmeras camadas de pequenos toques de pincel, com uma pintura bastante seca. Suas paletas são frequentemente homogêneas. Sua pintura é fina, porém composta de inúmeras camadas para obter halos - ela admira a pintura veneziana.

Suas obras mais enigmáticas são seus corpos, às vezes cortados, reduzidos a fragmentos, como baixos-relevos da antiguidade. Eles são a maior parte das vezes da cor da pedra. Paula Siebra cita o brasileiro Vicente do Rego Monteiro (1889-1970) ou o italiano Antonio Donghi, cujas pinturas aparentam-se às formas da arte naïf. Ela viu Magritte cujo quadro do MoMA, L’éternellement évident (1948), lhe marcou particularmente. Domenico Gnoli figura entre os seus heróis da pintura, o que se percebe diante desses personagens de frente ou de costas, se abraçando, imóveis ou ocupados com atividades minuciosas como a de examinar as pérolas de um colar com uma lupa. Suas cabeleiras são pintadas com cuidado, transformadas em superfícies abstratas comparáveis à rios ou paisagens cultivadas. Elas traduzem as mesmas obsessões que aquelas que assombram a mala arrumada, um desejo de harmonia.





As primeiras coisas

Mateus Nunes, 2024




A Mendes Wood DM apresenta As Primeiras Coisas, uma exposição individual de pinturas de Paula Siebra. Siebra talha imagens primordiais de objetos, emoções e signos cotidianos que convidam o observador a imergir em contextos memoriais e reverberações líricas. Partindo de um laconismo inicial – refletida na concisão dos títulos e no aspecto aparentemente sintético dos elementos das pinturas – e devastadoramente diretas, cada imagem é incisivamente entregue como densos cristais capazes que podem levar eras para se dissolverem, memórias em seu estágio quintessencial. As pinturas de Siebra refletem sobre memórias coletivas, relações sociais, subjetividades e desejos humanos, todos embalsamados por uma atmosfera nostálgica e metafísica.

Ao identificar as coisas mais primordiais na imagem e na vida, Siebra desenha uma cartografia de retornos, pintando os lugares que visitou por circunstância ou memória, e se ancora enquanto encara sem cerimônia a acumulação dos movimentos abruptos da vida. As roupas recém-lavadas de volta à cama; as canetas que, organizadas, revisitam o bolso da camisa; os sentimentos aprisionados, selados num envelope e depois soltos no mundo. Embora alegoricamente apresentadas em cenas isoladas, as pinturas produzem um macrocosmo interconectado por meio de mecanismos afetivos e semiológicos. Do mesmo modo, enquanto comunicam a inescapável percepção pessoal da artista, as obras se refletem na postulação desejada de uma vontade representativa coletiva, em que o universal e o particular se amalgamam.

A assertividade semântica notável de Siebra não se limita à representação formal – se estende também à captura da essência poética de seus encontros com esses objetos que, de certa maneira, também se transformam em sujeitos. Em sua repetição diária, esses objetos vivos e íntimos se provam bastante valiosos por permanecerem constantes e enfatizados ao longo de um arco temporal dilatado. Apesar de alguns inevitavelmente terem suas origens a uma serialidade fabril, Siebra propõe uma individualização de objetos que irradia suas subjetividades, pois eles pertencem a alguém especial, com histórias intransferíveis, testemunha de uma vida sedenta por sins (“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim.”1).

Esse realismo inegável, nu e cru alimenta um poder imaginativo inesgotável, continuamente atraindo camadas de significados e profundidades à expressão poética de Siebra. Além disso, é crucial lembrar que a idealização e a fabulação narrativa de um objeto não anulam sua realidade subjacente. Em O Piano, a busca arquetípica da artista é tão impetuosa que produz um instrumento com cem teclas, talvez mais absoluto e memorável que o comum, com oitenta e oito. A dúzia excedente se apresenta como uma firme e profunda voz que atesta a verdade da imagem. As oitavas são estendidas, e as imagens de fascinação, prolongadas, assim como o cabelo dourado e ondulado que se espraia para além dos limites da cama dupla em Cochilo, a desenhar uma topologia onírica próxima a Dunas.

Nesse reservatório de substância – e em qualquer ordem em que essa essência se constitua –, Siebra elenca e produz essas cenas tomada por um sentimento de zelo: não apenas no sentido do cuidado físico, como na meticulosa organização da mala de viagem e do polimento dos sapatos de salto baixo, mas na estima das memórias indeléveis. É como se a artista estivesse constantemente colecionando algo perdido em meio a um mundo descuidado, “prometendo uma vida de calor e segurança”2. Esse esmero é transmitido pela investigação da melhor posição e da melhor luz que determinado objeto pode ter em uma composição, um lastro fornecido pela erudição extrema de Siebra na história da pintura e na tradição da natureza morta. Ademais, a artista enlaça conexões pessoais enquanto revisita seus pintores favoritos, como se organizasse suas afetividades numa caixa de ferramentas: a imagem primordial e a força da vida quase banal de Antonio Donghi, a centralidade mnemônica de Domenico Gnoli, os tons sutis e a luz cozida de Albert York, a cuidadosa disposição e a coexistência espacial de Giorgio Morandi.

Em discordância ao que uma teoria da imagem obsoleta defendia – que determinado artista era passivamente influenciado pelos artistas que o precediam –, Siebra prova a influência ativa: faz “uma escolha intencional a partir de uma série de recursos que lhe são oferecidos pela história de sua profissão”.3 Essa postura ativa também se opõe ao poder artificial da história da arte, da fabricação e da organização das coisas, o que faz com que sua pintura manifeste traços da experiência do lugar onde Siebra nasceu, Fortaleza, no Brasil, expandindo-a, no entanto, por meio de uma profunda erudição, rumo a visualidades constelares, convergindo contextos geográficos e históricos muito diferentes. É nesse tom que Siebra impregna a ficção com tanta realidade e a experiência vivida com tanta fábula que esse limiar se dissolve e é reconstruído, como um castelo de areia cambiante.

Com ambígua inesgotabilidade e possibilidades iconológicas, a pintora apresenta objetos particulares encharcados de sugestões poéticas. Uma maçã, por exemplo: o cuidado tomado em polir sua casca envolvida por um lenço, sua presença na cesta de frutas na mesa posta, o grato orgulho disposto à mesa da professora, sua silhueta erótica, a síntese do pecado original, o primeiro desejo. Não há, portanto, nenhuma tentativa de estabelecer uma ideia platônica das coisas – há, na verdade, o esforço de acessar o núcleo rígido da imaginação da pintora. Essas imagens cristalinas, puras na medida em que são frágeis, mostram o entrelaçamento, por parte de Siebra, da psicanálise e da construção de arquétipos imagéticos que flertam com suas potências inconscientes.

As pinturas de Siebra remontam o árduo e corajoso exercício de relembrar memórias distantes incrustadas no inconsciente: imagina-se o ato de se lembrar com tanta força, com os olhos bem fechados e a respiração presa, como se dar a luz a uma imagem que vem ao mundo como se parida em faíscas pelos ouvidos. Suas imagens são sutilmente materializadas em entregas diretas, sem mediações. Ao sentar-se à mesa cuidadosamente posta apenas para si mesma, abrir um caderno de desenhos para trabalhar e colocar uma flor na lapela, anuncia a determinação diária de encarar o mundo, a força de lidar com a beleza e a dor exorbitantes por meio de um ato modesto, como a dizer: “Mundo, eu estou aqui para sofrer por você. Para morrer de amor por toda e cada coisa. Eu estou aqui, sozinha, pronta. É comigo.”



[1] Clarice Lispector, A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998 (originalmente publicado em 1977). p. 21.

[2] Virginia Woolf, “Solid Objects” (1920) in Virginia Woolf, A Haunted House: The Complete Shorter Fiction (ed. Susan Dick). London: Vintage, 2003, p. 98, tradução livre.

[3] Michael Baxandall, Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 102.





Noites de cetim: o escuro da memória e a pintura como relação

Mariana Leme, 2022


Ainda guardo em mim
Noites de cetim
Luas de marfim
Dias de sol cheio


        Anoitece na praia. Por alguns minutos, o céu tem a cor de brasa e, em seguida, arrefece em negro azulado. A paisagem se acalma e guarda a memória do dia que passou como num encantamento. As Noites de cetim de Paula Siebra são lembranças do calor do sol que já se escondeu, mas que permanece sob a pele; lembrança da canção de Amelinha que se ouvia na rádio, cujos versos servem agora de epígrafe. Há uma ilha sob as estrelas, luzes artificiais que brilham longe, o lusco-fusco, o breu. Crianças de banho tomado, um vaso de flores. A quietude da escuridão.

        Noites de cetim são também o resultado da pesquisa e do interesse da artista pela prática da silicogravura, as conhecidas “garrafinhas” nas quais imagens — frequentemente paisagens — são criadas a partir da justaposição de areias coloridas em frascos transparentes. Siebra não representa esses objetos, mas estabelece com eles um diálogo profundo, tanto a partir de um pensamento pictórico com passagens cromáticas rápidas, inesperadas talvez, quanto a partir da noção de pertencimento. Não à toa, a exposição também traz o trabalho de outros artistas que mantêm viva essa técnica centenária: Dudui (Carlos Eduardo da Rocha) e Edgar Freitas.

        As obras em óleo e têmpera a ovo são construídas com camadas sobrepostas que criam uma atmosfera densa, em que as cores afetam umas às outras, assim como a água do mar reflete a luz do céu, a areia úmida escurece, a vegetação cria manchas nas dunas. “Parece-me evidente que as cores variam em razão da luz”, afirmou o teórico renascentista Leon Battista Alberti, “uma vez que toda cor colocada na sombra não parece ser o que é na claridade.” [1] As cores são oscilantes por natureza, da mesma forma que as luzes e os movimentos das marés.

        Alberti, cujo tratado do século XV é considerado o primeiro a sistematizar um pensamento sobre pintura, toma posição: “Falo como pintor. Digo que pela mistura das cores nascem infinitas outras cores, mas existem apenas quatro cores verdadeiras de acordo com os elementos e, dessas quatro, muitas e muitas outras espécies de cores nascem. Existe a cor do fogo, o vermelho; a do ar, o azul; a da água, o verde; e a terra tem a cor cinzenta e parda.” [2] A passagem não é trivial. Ao conectar as cores que entende como “verdadeiras” aos quatro elementos, o autor propõe uma relação íntima entre pintura e natureza, como se fossem feitas da mesma matéria: uma relação de interdependência.

        Talvez seja possível dizer que os trabalhos de Siebra também nasçam do encontro entre a artista e o lugar, suas luzes, a matéria da qual ele é feito, a areia tingida com que as pessoas trabalham. Não são, portanto, composições desinteressadas, mas uma espécie de transfiguração da paisagem — natural e humana — em pintura, da escuridão em matéria densa, carregada de afeto.

        As imagens são aquilo mesmo que aparentam: o mar, o céu, a areia, o vaso de flores, a caixinha de joias, a mulher que penteia seus cabelos. Mas, assim como na canção que dá nome à mostra, as imagens evocam muitas outras na memória dos espectadores, sempre diversas e vacilantes, a depender de suas experiências pessoais.

        Há um sentido de generosidade na obra de Paula Siebra, construída pacientemente em pequenas pinceladas, com o depósito dos pigmentos: a existência se dá sempre em relação, numa espécie de consórcio. O azul do céu e do mar em Falésias e areia molhada, por exemplo, se altera com os tons alaranjados abaixo dele e à sua volta. Os elementos iconográficos também mudam de sentido quando colocados lado a lado. Dentro da caixa de joias em Coisas da minha mãe há um batom aberto, um frasco de vidro e, entre outros objetos, um par de olhos fechados. Abaixo deles, os brincos em formato de gota transformam-se em lágrimas e ecoam a cortina da entrada da exposição. Pérolas são água que são joias — que são também um enigma, uma história pessoal. Nada existe a não ser em conjunto. A Mulher penteando o cabelo, limpo do sal, parece rememorar acontecimentos recentes, e a forma do seu corpo traz à lembrança esculturas populares e ex-votos de madeira, objetos de arte profundamente implicados na vida e no corpo de quem os produziu.

        “Contém em si a pintura — tanto quanto se diz da amizade — a força divina de fazer presentes os ausentes”, escreveu Alberti. [3] Assim como as cores influenciam umas às outras e as luzes também alteram as qualidades daquilo que se vê, os encontros das pessoas são capazes de transformar suas experiências e seus trabalhos. A convivência dos artistas no litoral, as memórias dos dias ensolarados, o conhecimento técnico compartilhado são as substâncias fundamentais para a criação das obras, assim como o encontro entre elas e quem quer que esteja interessado em se demorar em frente a essas pinturas-amizades, evocando outras imagens. Talvez sejam Noites provisórias, infinitas. Tão numerosas quanto são as noites.



[1] ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p. 84. Tradução de Antônio da Silveira Mendonça.
[2] Idem, p. 85.
[3] Idem, p. 99.



A cor em transição na lembrança

Carolina Vieira, 2022

Segundo os estudos de Lu Jong, um tipo de Yoga tibetano, a terra é um dos cinco elementos trabalhados dentro e fora do corpo e tem como qualidade pura a calma. Associada ao elemento terra, a calma vem na contramão de muito do que se vive agora e, ao mesmo tempo, ela é tão necessária enquanto lugar de respiro, pausa e observação. Assim é a obra de Paula Siebra, revelando um gesto atencioso e um convite a contemplar aquilo que nos cerca.

O tempo presente nos pede isso: respiro, pausa, amorosidade. A pintura de Paula requer atenção e em troca é possível perceber o acolhimento e o cuidado que a contemplação de sua obra provoca. Os elementos contidos nos seus trabalhos muitas vezes trazem, a partir do cotidiano, uma sensação de pertencimento e de intimidade, que é "nada mais que sentir-se em casa", como disse a própria artista em uma troca de correspondências. Qual lembrança faz você se sentir em casa? Que lugar seria esse?

Com o olhar atento ao seu entorno, Siebra chegou às garrafinhas de areia. Estes objetos, enquanto artesania, tornaram-se algo habitual: talvez pela produção em massa e comercialização turística, a técnica da arenogravura, silicogravura ou ciclogravura tornou-se algo tão comum. Um trabalho que demanda paciência e imaginação não é um simples objeto trivial da cultura do litoral cearense — um souvenir, um chaveirinho, uma lembrança do Ceará.

Há algo nesse objeto que chama a atenção de Paula: a construção da paisagem, a relação com as cores de seus pintores preferidos, a composição enquanto possibilidade de imagem figurativa ou abstrata. A artista percebeu a riqueza da criação no trabalho de composição das imagens com areia colorida em garrafas de vidro — um trabalho delicado, sensível e precioso. Além disso, ao aprofundar sua pesquisa, ainda se deparou com o fato de que, no Ceará, a história do mito fundador da prática traz o nome de uma mulher, Joana Carneiro Maia (1908-1978), que a desenvolveu e repassou para outras pessoas no município de Majorlândia.

São vários nomes para uma mesma técnica que é aqui exaltada através do olhar de Paula Siebra, convidando o público a perceber com olhar de novidade aquilo que é rotineiro e que também está além do visível — como uma paisagem de pôr do sol na praia, jangadas ao mar, falésias ou uma simples duna no litoral.

––
Carolina Vieira é pesquisadora no campo da arte com mestrado em Teoria e Crítica de Arte (EBA - UFMG), especialização em Arte Contemporânea (PUC-Minas) e em Arte e Educação (Uni7). Coordenou o Programa de Formação Básica em Artes Visuais do Porto Iracema das Artes (2013-2021). Esteve como mediadora do grupo de estudo sobre a História das Exposições de Arte do Ceará, na Galeria Multiarte (2014-2020). Hoje, atua na Pinacoteca do Ceará. 

Depois do almoço

Bruno Brito, 2022
“O ideal seria fazer de cada coisa o centro do universo” 

— Ortega y Gasset

        Capelinhas, jarros, copos, flores, fachadas de casas, lugares comuns e composições corriqueiras sobre uma toalha da mesa. São alguns dos elementos que compõem o vocabulário visual de Paula Siebra, natural do Ceará. Seu trabalho lança luz sobre um cotidiano brasileiro que é silencioso e sutil, diferente daquele outro comercial, facilmente colocado na gaveta da "brasilidade" com profusão de cores saturadas, sons, texturas e excessos de modo geral. 

Paula opta por uma paleta de cores esmaecidas e que já aparentam ter nascido antigas. Cores movediças que, paradoxalmente, foram temperadas por uma jovem pintora nos dias de hoje. Movediças pois parecem cambiar feito as paisagens de areia do nordeste brasileiro, ambiente familiar à artista: um amarelo que verde ao verde, um azul que tende ao marrom, um branco que tende ao cinza. Areias estas que também resultam nas tradicionais garrafinhas ilustradas por artesãos no Ceará e arredores, ornamentadas com signos regionais que também afloram na obra da artista.

Se Paula se tornasse uma artesã na areia, provavelmente optaria por preencher ampulhetas ao invés de garrafas. Ampulhetas para que pensássemos na brevidade das imagens e das nossas memórias mais sutis. Bastaria girar o objeto para que a imagem se dissolvesse diante de nossos olhos, resultando numa grande mancha de alguma cor ainda sem nome. Enquanto a artista emprega a linguagem da pintura, Paula nos apresenta imagens que parecem estar desaparecendo lentamente, ou de um ponto de vista mais otimista, aflorando novamente no campo da tela, como uma cianotipia sendo revelada com a luz do sol.

Curiosamente ficamos órfãos diante das pinturas e não sabemos em que momento se encontra a imagem em questão. Não identificamos quanto foi pintada, quando foi redescoberta ou quanto tempo ainda irá durar sobre o suporte plano. Para um observador desavisado como eu no primeiro contato com a obra, suas pinturas parecem de algum artista de outrora, talvez um modernista ou um anônimo da primeira metade do século XX no Brasil. Não somente pela idade que a pintura aparenta ter, mas pela forma que a imagem foi concebida e apresentada. Isso nos leva a crer que parece haver um pensamento que paira no imaginário de alguns pintores no decorrer dos anos e Paula está entre eles: Alfredo Volpi, José Pancetti, Lore Koch, Lorenzato, Rebolo, Júlio Martins da Silva, Portinari, Tarsila, Piero dell Francesca e tantos outros, como Valloton, que a artista tanto gosta e reconhece nas despretensiosas garrafinhas cearenses.

Parece lícito dizer que os trabalhos de Paula são dotados de uma atemporalidade desconcertante e que poderiam ter sido feitos 100 anos atrás, ontem, hoje ou mesmo amanhã, por conta de seu frescor. Olhar para este conjunto de imagens nos dá a sensação que emprestamos a memória de alguém que sequer conhecemos, com cenas que não vivemos e até sentimos saudade de algo que nunca possuímos. Essa intimidade, retratada

de maneira sensível por Paula, nos faz acessar uma memória que é atemporal, difusa e etérea.

Apesar da luminosidade em seus quadros apontar para um certo calor alaranjado, como daqueles finais de tarde em De Chirico, as pinturas de Paula parecem registrar uma hora não-cronológica, ou melhor, uma "entre-hora". Hora em que as cabras desaparecem no misticismo sertanejo, como descreve Câmara Cascudo. Hora entre uma badalada e outra do sino da matriz. Hora que precede o terço e a ladainha. A artista nunca retrata a hora cheia, protagonista do relógio analógico e dos compromissos anotados no calendário de parede. Pelo contrário, Paula parece buscar um certo anonimato do tempo e, por quê não, do espaço. Ao representar esses elementos de um cotidiano popular, a artista preenche justamente as lacunas dessa vida doméstica e comunitária, comum a muitos de nós.

Suas pinturas, desenhos e gravuras se assemelham a fotografias tiradas por um narrador oculto que chegou atrasado para registrar a cena principal, ficando apenas com a parte residual do fato ocorrido. A este narrador restou somente a maçã desistida ao meio, a migalha de pão na mesa, o café frio na garrafa e o amado que, de tanto esperar, adormeceu.

Seriam essas as imagens que permeiam nosso inconsciente entre um sonho e outro? No ínterim das narrativas heróicas, assustadoras ou surreais - estas que lembramos ao acordar - estariam esses trechos ordinários da vida que não reparamos em vigília? O varal de roupas sem relevância entre uma árvore e um sobrado, aqui parece aflorar na lembrança de Paula, em sua pintura e em nós, observadores.

Como no conto de Clarice Lispector, onde um cego mascando chiclete no ponto de ônibus desestabiliza a protagonista, as cenas pintadas por Paula parecem nos deslocar para estas frestas da lembrança, desimportantes para a vida oficial das horas cheias, anotadas e cumpridas. É como se estes objetos e personagens discretos e silenciosos - clamassem por nossa atenção momentaneamente, não de maneira espalhafatosa ou efusiva, mas por meio de seus próprios significados contidos em si, emergidos agora na superfície da tela. São elementos impregnados dos acontecimentos ao seu redor que, ao serem organizados pela artista, se apresentam a nós de maneira humilde e hierática.
 

___

Bruno Brito é formado em Artes Visuais pela UNESP, Mestre e Doutorando pela mesma instituição. Foi docente na Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP) e lecionou na Pós-Graduação em Cozinha Brasileira do SENAC Campos do Jordão. Também é pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa Paisagem, Território e Cultura, da Universidade de Taubaté (UNITAU).