As primeiras coisas

Mateus Nunes, 2024




A Mendes Wood DM apresenta As Primeiras Coisas, uma exposição individual de pinturas de Paula Siebra. Siebra talha imagens primordiais de objetos, emoções e signos cotidianos que convidam o observador a imergir em contextos memoriais e reverberações líricas. Partindo de um laconismo inicial – refletida na concisão dos títulos e no aspecto aparentemente sintético dos elementos das pinturas – e devastadoramente diretas, cada imagem é incisivamente entregue como densos cristais capazes que podem levar eras para se dissolverem, memórias em seu estágio quintessencial. As pinturas de Siebra refletem sobre memórias coletivas, relações sociais, subjetividades e desejos humanos, todos embalsamados por uma atmosfera nostálgica e metafísica.

Ao identificar as coisas mais primordiais na imagem e na vida, Siebra desenha uma cartografia de retornos, pintando os lugares que visitou por circunstância ou memória, e se ancora enquanto encara sem cerimônia a acumulação dos movimentos abruptos da vida. As roupas recém-lavadas de volta à cama; as canetas que, organizadas, revisitam o bolso da camisa; os sentimentos aprisionados, selados num envelope e depois soltos no mundo. Embora alegoricamente apresentadas em cenas isoladas, as pinturas produzem um macrocosmo interconectado por meio de mecanismos afetivos e semiológicos. Do mesmo modo, enquanto comunicam a inescapável percepção pessoal da artista, as obras se refletem na postulação desejada de uma vontade representativa coletiva, em que o universal e o particular se amalgamam.

A assertividade semântica notável de Siebra não se limita à representação formal – se estende também à captura da essência poética de seus encontros com esses objetos que, de certa maneira, também se transformam em sujeitos. Em sua repetição diária, esses objetos vivos e íntimos se provam bastante valiosos por permanecerem constantes e enfatizados ao longo de um arco temporal dilatado. Apesar de alguns inevitavelmente terem suas origens a uma serialidade fabril, Siebra propõe uma individualização de objetos que irradia suas subjetividades, pois eles pertencem a alguém especial, com histórias intransferíveis, testemunha de uma vida sedenta por sins (“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim.”1).

Esse realismo inegável, nu e cru alimenta um poder imaginativo inesgotável, continuamente atraindo camadas de significados e profundidades à expressão poética de Siebra. Além disso, é crucial lembrar que a idealização e a fabulação narrativa de um objeto não anulam sua realidade subjacente. Em O Piano, a busca arquetípica da artista é tão impetuosa que produz um instrumento com cem teclas, talvez mais absoluto e memorável que o comum, com oitenta e oito. A dúzia excedente se apresenta como uma firme e profunda voz que atesta a verdade da imagem. As oitavas são estendidas, e as imagens de fascinação, prolongadas, assim como o cabelo dourado e ondulado que se espraia para além dos limites da cama dupla em Cochilo, a desenhar uma topologia onírica próxima a Dunas.

Nesse reservatório de substância – e em qualquer ordem em que essa essência se constitua –, Siebra elenca e produz essas cenas tomada por um sentimento de zelo: não apenas no sentido do cuidado físico, como na meticulosa organização da mala de viagem e do polimento dos sapatos de salto baixo, mas na estima das memórias indeléveis. É como se a artista estivesse constantemente colecionando algo perdido em meio a um mundo descuidado, “prometendo uma vida de calor e segurança”2. Esse esmero é transmitido pela investigação da melhor posição e da melhor luz que determinado objeto pode ter em uma composição, um lastro fornecido pela erudição extrema de Siebra na história da pintura e na tradição da natureza morta. Ademais, a artista enlaça conexões pessoais enquanto revisita seus pintores favoritos, como se organizasse suas afetividades numa caixa de ferramentas: a imagem primordial e a força da vida quase banal de Antonio Donghi, a centralidade mnemônica de Domenico Gnoli, os tons sutis e a luz cozida de Albert York, a cuidadosa disposição e a coexistência espacial de Giorgio Morandi.

Em discordância ao que uma teoria da imagem obsoleta defendia – que determinado artista era passivamente influenciado pelos artistas que o precediam –, Siebra prova a influência ativa: faz “uma escolha intencional a partir de uma série de recursos que lhe são oferecidos pela história de sua profissão”.3 Essa postura ativa também se opõe ao poder artificial da história da arte, da fabricação e da organização das coisas, o que faz com que sua pintura manifeste traços da experiência do lugar onde Siebra nasceu, Fortaleza, no Brasil, expandindo-a, no entanto, por meio de uma profunda erudição, rumo a visualidades constelares, convergindo contextos geográficos e históricos muito diferentes. É nesse tom que Siebra impregna a ficção com tanta realidade e a experiência vivida com tanta fábula que esse limiar se dissolve e é reconstruído, como um castelo de areia cambiante.

Com ambígua inesgotabilidade e possibilidades iconológicas, a pintora apresenta objetos particulares encharcados de sugestões poéticas. Uma maçã, por exemplo: o cuidado tomado em polir sua casca envolvida por um lenço, sua presença na cesta de frutas na mesa posta, o grato orgulho disposto à mesa da professora, sua silhueta erótica, a síntese do pecado original, o primeiro desejo. Não há, portanto, nenhuma tentativa de estabelecer uma ideia platônica das coisas – há, na verdade, o esforço de acessar o núcleo rígido da imaginação da pintora. Essas imagens cristalinas, puras na medida em que são frágeis, mostram o entrelaçamento, por parte de Siebra, da psicanálise e da construção de arquétipos imagéticos que flertam com suas potências inconscientes.

As pinturas de Siebra remontam o árduo e corajoso exercício de relembrar memórias distantes incrustadas no inconsciente: imagina-se o ato de se lembrar com tanta força, com os olhos bem fechados e a respiração presa, como se dar a luz a uma imagem que vem ao mundo como se parida em faíscas pelos ouvidos. Suas imagens são sutilmente materializadas em entregas diretas, sem mediações. Ao sentar-se à mesa cuidadosamente posta apenas para si mesma, abrir um caderno de desenhos para trabalhar e colocar uma flor na lapela, anuncia a determinação diária de encarar o mundo, a força de lidar com a beleza e a dor exorbitantes por meio de um ato modesto, como a dizer: “Mundo, eu estou aqui para sofrer por você. Para morrer de amor por toda e cada coisa. Eu estou aqui, sozinha, pronta. É comigo.”



[1] Clarice Lispector, A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998 (originalmente publicado em 1977). p. 21.

[2] Virginia Woolf, “Solid Objects” (1920) in Virginia Woolf, A Haunted House: The Complete Shorter Fiction (ed. Susan Dick). London: Vintage, 2003, p. 98, tradução livre.

[3] Michael Baxandall, Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 102.





Noites de cetim: o escuro da memória e a pintura como relação

Mariana Leme, 2022


Ainda guardo em mim
Noites de cetim
Luas de marfim
Dias de sol cheio


        Anoitece na praia. Por alguns minutos, o céu tem a cor de brasa e, em seguida, arrefece em negro azulado. A paisagem se acalma e guarda a memória do dia que passou como num encantamento. As Noites de cetim de Paula Siebra são lembranças do calor do sol que já se escondeu, mas que permanece sob a pele; lembrança da canção de Amelinha que se ouvia na rádio, cujos versos servem agora de epígrafe. Há uma ilha sob as estrelas, luzes artificiais que brilham longe, o lusco-fusco, o breu. Crianças de banho tomado, um vaso de flores. A quietude da escuridão.

        Noites de cetim são também o resultado da pesquisa e do interesse da artista pela prática da silicogravura, as conhecidas “garrafinhas” nas quais imagens — frequentemente paisagens — são criadas a partir da justaposição de areias coloridas em frascos transparentes. Siebra não representa esses objetos, mas estabelece com eles um diálogo profundo, tanto a partir de um pensamento pictórico com passagens cromáticas rápidas, inesperadas talvez, quanto a partir da noção de pertencimento. Não à toa, a exposição também traz o trabalho de outros artistas que mantêm viva essa técnica centenária: Dudui (Carlos Eduardo da Rocha) e Edgar Freitas.

        As obras em óleo e têmpera a ovo são construídas com camadas sobrepostas que criam uma atmosfera densa, em que as cores afetam umas às outras, assim como a água do mar reflete a luz do céu, a areia úmida escurece, a vegetação cria manchas nas dunas. “Parece-me evidente que as cores variam em razão da luz”, afirmou o teórico renascentista Leon Battista Alberti, “uma vez que toda cor colocada na sombra não parece ser o que é na claridade.” [1] As cores são oscilantes por natureza, da mesma forma que as luzes e os movimentos das marés.

        Alberti, cujo tratado do século XV é considerado o primeiro a sistematizar um pensamento sobre pintura, toma posição: “Falo como pintor. Digo que pela mistura das cores nascem infinitas outras cores, mas existem apenas quatro cores verdadeiras de acordo com os elementos e, dessas quatro, muitas e muitas outras espécies de cores nascem. Existe a cor do fogo, o vermelho; a do ar, o azul; a da água, o verde; e a terra tem a cor cinzenta e parda.” [2] A passagem não é trivial. Ao conectar as cores que entende como “verdadeiras” aos quatro elementos, o autor propõe uma relação íntima entre pintura e natureza, como se fossem feitas da mesma matéria: uma relação de interdependência.

        Talvez seja possível dizer que os trabalhos de Siebra também nasçam do encontro entre a artista e o lugar, suas luzes, a matéria da qual ele é feito, a areia tingida com que as pessoas trabalham. Não são, portanto, composições desinteressadas, mas uma espécie de transfiguração da paisagem — natural e humana — em pintura, da escuridão em matéria densa, carregada de afeto.

        As imagens são aquilo mesmo que aparentam: o mar, o céu, a areia, o vaso de flores, a caixinha de joias, a mulher que penteia seus cabelos. Mas, assim como na canção que dá nome à mostra, as imagens evocam muitas outras na memória dos espectadores, sempre diversas e vacilantes, a depender de suas experiências pessoais.

        Há um sentido de generosidade na obra de Paula Siebra, construída pacientemente em pequenas pinceladas, com o depósito dos pigmentos: a existência se dá sempre em relação, numa espécie de consórcio. O azul do céu e do mar em Falésias e areia molhada, por exemplo, se altera com os tons alaranjados abaixo dele e à sua volta. Os elementos iconográficos também mudam de sentido quando colocados lado a lado. Dentro da caixa de joias em Coisas da minha mãe há um batom aberto, um frasco de vidro e, entre outros objetos, um par de olhos fechados. Abaixo deles, os brincos em formato de gota transformam-se em lágrimas e ecoam a cortina da entrada da exposição. Pérolas são água que são joias — que são também um enigma, uma história pessoal. Nada existe a não ser em conjunto. A Mulher penteando o cabelo, limpo do sal, parece rememorar acontecimentos recentes, e a forma do seu corpo traz à lembrança esculturas populares e ex-votos de madeira, objetos de arte profundamente implicados na vida e no corpo de quem os produziu.

        “Contém em si a pintura — tanto quanto se diz da amizade — a força divina de fazer presentes os ausentes”, escreveu Alberti. [3] Assim como as cores influenciam umas às outras e as luzes também alteram as qualidades daquilo que se vê, os encontros das pessoas são capazes de transformar suas experiências e seus trabalhos. A convivência dos artistas no litoral, as memórias dos dias ensolarados, o conhecimento técnico compartilhado são as substâncias fundamentais para a criação das obras, assim como o encontro entre elas e quem quer que esteja interessado em se demorar em frente a essas pinturas-amizades, evocando outras imagens. Talvez sejam Noites provisórias, infinitas. Tão numerosas quanto são as noites.



[1] ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p. 84. Tradução de Antônio da Silveira Mendonça.
[2] Idem, p. 85.
[3] Idem, p. 99.



A cor em transição na lembrança

Carolina Vieira, 2022

Segundo os estudos de Lu Jong, um tipo de Yoga tibetano, a terra é um dos cinco elementos trabalhados dentro e fora do corpo e tem como qualidade pura a calma. Associada ao elemento terra, a calma vem na contramão de muito do que se vive agora e, ao mesmo tempo, ela é tão necessária enquanto lugar de respiro, pausa e observação. Assim é a obra de Paula Siebra, revelando um gesto atencioso e um convite a contemplar aquilo que nos cerca.

O tempo presente nos pede isso: respiro, pausa, amorosidade. A pintura de Paula requer atenção e em troca é possível perceber o acolhimento e o cuidado que a contemplação de sua obra provoca. Os elementos contidos nos seus trabalhos muitas vezes trazem, a partir do cotidiano, uma sensação de pertencimento e de intimidade, que é "nada mais que sentir-se em casa", como disse a própria artista em uma troca de correspondências. Qual lembrança faz você se sentir em casa? Que lugar seria esse?

Com o olhar atento ao seu entorno, Siebra chegou às garrafinhas de areia. Estes objetos, enquanto artesania, tornaram-se algo habitual: talvez pela produção em massa e comercialização turística, a técnica da arenogravura, silicogravura ou ciclogravura tornou-se algo tão comum. Um trabalho que demanda paciência e imaginação não é um simples objeto trivial da cultura do litoral cearense — um souvenir, um chaveirinho, uma lembrança do Ceará.

Há algo nesse objeto que chama a atenção de Paula: a construção da paisagem, a relação com as cores de seus pintores preferidos, a composição enquanto possibilidade de imagem figurativa ou abstrata. A artista percebeu a riqueza da criação no trabalho de composição das imagens com areia colorida em garrafas de vidro — um trabalho delicado, sensível e precioso. Além disso, ao aprofundar sua pesquisa, ainda se deparou com o fato de que, no Ceará, a história do mito fundador da prática traz o nome de uma mulher, Joana Carneiro Maia (1908-1978), que a desenvolveu e repassou para outras pessoas no município de Majorlândia.

São vários nomes para uma mesma técnica que é aqui exaltada através do olhar de Paula Siebra, convidando o público a perceber com olhar de novidade aquilo que é rotineiro e que também está além do visível — como uma paisagem de pôr do sol na praia, jangadas ao mar, falésias ou uma simples duna no litoral.

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Carolina Vieira é pesquisadora no campo da arte com mestrado em Teoria e Crítica de Arte (EBA - UFMG), especialização em Arte Contemporânea (PUC-Minas) e em Arte e Educação (Uni7). Coordenou o Programa de Formação Básica em Artes Visuais do Porto Iracema das Artes (2013-2021). Esteve como mediadora do grupo de estudo sobre a História das Exposições de Arte do Ceará, na Galeria Multiarte (2014-2020). Hoje, atua na Pinacoteca do Ceará. 

Depois do almoço

Bruno Brito, 2022
“O ideal seria fazer de cada coisa o centro do universo” 

— Ortega y Gasset

        Capelinhas, jarros, copos, flores, fachadas de casas, lugares comuns e composições corriqueiras sobre uma toalha da mesa. São alguns dos elementos que compõem o vocabulário visual de Paula Siebra, natural do Ceará. Seu trabalho lança luz sobre um cotidiano brasileiro que é silencioso e sutil, diferente daquele outro comercial, facilmente colocado na gaveta da "brasilidade" com profusão de cores saturadas, sons, texturas e excessos de modo geral. 

Paula opta por uma paleta de cores esmaecidas e que já aparentam ter nascido antigas. Cores movediças que, paradoxalmente, foram temperadas por uma jovem pintora nos dias de hoje. Movediças pois parecem cambiar feito as paisagens de areia do nordeste brasileiro, ambiente familiar à artista: um amarelo que verde ao verde, um azul que tende ao marrom, um branco que tende ao cinza. Areias estas que também resultam nas tradicionais garrafinhas ilustradas por artesãos no Ceará e arredores, ornamentadas com signos regionais que também afloram na obra da artista.

Se Paula se tornasse uma artesã na areia, provavelmente optaria por preencher ampulhetas ao invés de garrafas. Ampulhetas para que pensássemos na brevidade das imagens e das nossas memórias mais sutis. Bastaria girar o objeto para que a imagem se dissolvesse diante de nossos olhos, resultando numa grande mancha de alguma cor ainda sem nome. Enquanto a artista emprega a linguagem da pintura, Paula nos apresenta imagens que parecem estar desaparecendo lentamente, ou de um ponto de vista mais otimista, aflorando novamente no campo da tela, como uma cianotipia sendo revelada com a luz do sol.

Curiosamente ficamos órfãos diante das pinturas e não sabemos em que momento se encontra a imagem em questão. Não identificamos quanto foi pintada, quando foi redescoberta ou quanto tempo ainda irá durar sobre o suporte plano. Para um observador desavisado como eu no primeiro contato com a obra, suas pinturas parecem de algum artista de outrora, talvez um modernista ou um anônimo da primeira metade do século XX no Brasil. Não somente pela idade que a pintura aparenta ter, mas pela forma que a imagem foi concebida e apresentada. Isso nos leva a crer que parece haver um pensamento que paira no imaginário de alguns pintores no decorrer dos anos e Paula está entre eles: Alfredo Volpi, José Pancetti, Lore Koch, Lorenzato, Rebolo, Júlio Martins da Silva, Portinari, Tarsila, Piero dell Francesca e tantos outros, como Valloton, que a artista tanto gosta e reconhece nas despretensiosas garrafinhas cearenses.

Parece lícito dizer que os trabalhos de Paula são dotados de uma atemporalidade desconcertante e que poderiam ter sido feitos 100 anos atrás, ontem, hoje ou mesmo amanhã, por conta de seu frescor. Olhar para este conjunto de imagens nos dá a sensação que emprestamos a memória de alguém que sequer conhecemos, com cenas que não vivemos e até sentimos saudade de algo que nunca possuímos. Essa intimidade, retratada

de maneira sensível por Paula, nos faz acessar uma memória que é atemporal, difusa e etérea.

Apesar da luminosidade em seus quadros apontar para um certo calor alaranjado, como daqueles finais de tarde em De Chirico, as pinturas de Paula parecem registrar uma hora não-cronológica, ou melhor, uma "entre-hora". Hora em que as cabras desaparecem no misticismo sertanejo, como descreve Câmara Cascudo. Hora entre uma badalada e outra do sino da matriz. Hora que precede o terço e a ladainha. A artista nunca retrata a hora cheia, protagonista do relógio analógico e dos compromissos anotados no calendário de parede. Pelo contrário, Paula parece buscar um certo anonimato do tempo e, por quê não, do espaço. Ao representar esses elementos de um cotidiano popular, a artista preenche justamente as lacunas dessa vida doméstica e comunitária, comum a muitos de nós.

Suas pinturas, desenhos e gravuras se assemelham a fotografias tiradas por um narrador oculto que chegou atrasado para registrar a cena principal, ficando apenas com a parte residual do fato ocorrido. A este narrador restou somente a maçã desistida ao meio, a migalha de pão na mesa, o café frio na garrafa e o amado que, de tanto esperar, adormeceu.

Seriam essas as imagens que permeiam nosso inconsciente entre um sonho e outro? No ínterim das narrativas heróicas, assustadoras ou surreais - estas que lembramos ao acordar - estariam esses trechos ordinários da vida que não reparamos em vigília? O varal de roupas sem relevância entre uma árvore e um sobrado, aqui parece aflorar na lembrança de Paula, em sua pintura e em nós, observadores.

Como no conto de Clarice Lispector, onde um cego mascando chiclete no ponto de ônibus desestabiliza a protagonista, as cenas pintadas por Paula parecem nos deslocar para estas frestas da lembrança, desimportantes para a vida oficial das horas cheias, anotadas e cumpridas. É como se estes objetos e personagens discretos e silenciosos - clamassem por nossa atenção momentaneamente, não de maneira espalhafatosa ou efusiva, mas por meio de seus próprios significados contidos em si, emergidos agora na superfície da tela. São elementos impregnados dos acontecimentos ao seu redor que, ao serem organizados pela artista, se apresentam a nós de maneira humilde e hierática.
 

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Bruno Brito é formado em Artes Visuais pela UNESP, Mestre e Doutorando pela mesma instituição. Foi docente na Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP) e lecionou na Pós-Graduação em Cozinha Brasileira do SENAC Campos do Jordão. Também é pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa Paisagem, Território e Cultura, da Universidade de Taubaté (UNITAU). 
Cor de terra batida: instabilidade e amor no trabalho de Paula Siebra

Mariana Leme,

2021
Sou uma garota que sonha com o ócio, sempre sonhei. O devaneio sempre foi necessário para minha existência. [...]
Sou do tipo que se encontra no sofá, na varanda dos fundos, no balanço, para assistir imóvel ao mundo. — bell hooks


        No ateliê de Paula Siebra, uma casa fresca no centro histórico de Fortaleza, estão alguns de seus trabalhos prontos, outros em andamento e também muitos estudos: em papel, em tela, por escrito; fragmentos de ideias, das vidas e das coisas que povoam o imaginário da artista. Ainda que restrito a um número cada vez menor de pessoas, um lugar de trabalho que seja agradável e silencioso “é tão necessário [...] quanto a água é necessária para que algo cresça”[1], nas palavras da grande intelectual bell hooks, segundo a qual o amor é um ato político, uma força transformadora [2]. Lembro-me de ver, em uma das paredes do ateliê, anotações sobre “gente da minha rua”: seu Juvenal, um homem de aparência desconfiada; o esboço do retrato de uma mulher de cabelos brancos sobre um fundo verde; outra que posa sentada, com as mãos no colo e um sorriso tímido. A pintura, nesse caso, não é trabalho abstrato que se faz em qualquer lugar, mas um exercício de pertencimento, profundamente ancorado na realidade material, tanto do próprio ofício, quanto da realidade à sua volta.

        Para hooks, ao contrário de um sentimento passivo, o amor é uma prática constante de
“cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade e respeito”[3] — o que não significa negar a realidade de injustiça institucionalizada, mas fazer uma escolha consciente de como se responde a ela. Na verdade, conforto, beleza e cuidado (tanto em termos materiais quanto simbólicos) não deveriam ser exclusivos de uma elite, pelo contrário: o horizonte político da sociedade como um todo.

        Numa das mesas do ateliê estão os pigmentos moídos, os óleos e as ferramentas para a preparação das tintas: atividade lenta, artesanal e meticulosa, que carrega uma tradição de séculos. Não se trata de preciosismo técnico, porém: a matéria da pintura e o próprio exercício deste ofício — cotidiano, reiterado — trazem em si um saber que se conecta profundamente com as imagens produzidas por Siebra e sua pesquisa conceitual, de maneira alargada. Um saber que vem do corpo, do tempo, e que vai se decantando em fragmentos e em camadas sobrepostas.

        Apesar da aparente calmaria das imagens, as cores são instáveis, cujo efeito óptico pode se alterar profundamente a depender das outras com as quais se combinam. Os fundos terrosos aplicados na tela antes ou depois de tons de cinza, criam um conflito sutil, perceptível apenas a quem escolhe observar os trabalhos de maneira mais demorada. Pouco importa. As tensões estarão lá, independentes do “sujeito”, que a tradição ocidental elegeu como sendo o centro do universo.

        Na superfície — e a superfície é fundamental para a pintura —, o trabalho de Siebra dialoga tanto com os objetos cotidianos e frequentemente artesanais — jarros, santos, canecas, rendas — quanto com uma tradição da pintura que floresceu sobretudo nos Países Baixos do século XVII. O filósofo Tzvetan Todorov, em seu livro Elogio do cotidiano, afirma que os gêneros da pintura não são apenas distintos mas fazem parte de uma hierarquia estabelecida “ao longo dos séculos [...], reflexo de uma concepção sobre a ordem do mundo”. Segundo este esquema, “o mundo inanimado,
mineral e vegetal é o mais baixo”[4].
Contrariando a hierarquia e profundamente atravessados pela religiosidade protestante, pintores e pintoras do Norte da Europa passaram a representar o cotidiano a partir de uma dignidade ontológica: “as mulheres que fazem a limpeza são colocadas nos pedestais dos santos e dos herói da antiguidade”[5], como se os acontecimentos banais fossem tão importantes quanto, ou ainda mais, que as grandes personalidades históricas ou mitológicas. “A pintura holandesa”, afirma Todorov, “não nega as virtudes e os vícios, mas os transcende em prazer diante da existência mundana”.[6]

        Teria este elogio da beleza um sentido semelhante àquele do cuidado em bell hooks? Difícil dizer, mas talvez exista algum ponto de contato, no sentido de que é agradável olhar para uma pintura de Johannes Vermeer, o que extrapola o simples deleite: “O espaço solitário às vezes é um lugar onde sonhos e visões entram, às vezes é um lugar onde nada acontece [...] Essa imobilidade, essa quietude, [é] necessária para o cultivo contínuo de qualquer devoção a uma prática artística”, afirma hooks.

        No entanto, não se trata de um elogio acrítico do cotidiano, como se fosse possível sublimar a profunda desigualdade que estrutura a sociedade. Se os artistas da chamada “época de ouro” holandesa puderam ignorar que a riqueza do país era fruto de uma brutal exploração — inclusive pela distância física das plantations —, evitar tais conflitos numa ex-colônia como o Brasil, o país vermelho em brasa, é bem mais difícil.

        Por esta razão, no trabalho de Siebra, não apenas as cores são instáveis, mas as próprias imagens sugerem uma tensão permanente, ainda que sutil. Em Duas estacas e ilha, por exemplo, os pedaços frágeis de madeira pintada parecem sustentar a montanha, criando uma paisagem estranha. Mas não apenas elas estão fincadas na areia macia e movediça da praia, como também não chegam a tocar a ilha. São milímetros, capazes de desestabilizar toda a paisagem, ainda mais que os volumes sinuosos de suas sombras projetadas no chão.

        Muitas das pinturas são construídas em camadas de cor e memória, como nas paredes descascadas ou desbotadas pelo sol, quando faltam recursos para manutenção e outras coisas são mais urgentes que uma fachada bem-acabada. Talvez estas sejam um testemunho da precariedade da existência, mas, mesmo assim, alguém teve o cuidado de desenhar dois barquinhos, simétricos, na porta. Ou estrelas.

        Além da tradição, da memória e do tempo, há também o humor, mostrando que nada é exatamente o que parece, apesar da solenidade tradicional (e elitista) da pintura a óleo. Em Nu na rede, um homem está deitado tal qual descreve o título, com a vista de sua janela ao fundo. Da mesma cor alaranjada, pele e tecido quase se misturam e um espectador desavisado mal notaria seu pênis ereto, iconografia rara na história da arte, cujo sexismo privilegiou a nudez e a “disponibilidade” dos corpos femininos para deleite do espectador, idealmente um homem branco.

        Em outra imagem, um abajur amarelo — referência mais ou menos direta à tradição das naturezas-mortas — é sustentado por uma estrutura de ferro que se assemelha a quatro rolos de papel higiênico nada solenes, e, numa terceira, a figura da menina com espelho não responde às expectativas de contato — seu olhar oblíquo volta-se a si mesma, criando uma promessa de cumplicidade, jamais alcançada. Em Cascavel, um buquê floresce no telhado da casa; em Merenda com suspiros talvez apenas os brasileiros (e alguns falantes de português) compreenderão as duas principais palavras do título. A imagem está lá em sua crueza, aparentemente sem mistérios. Mas para decifrar esta suposta “crueza” é preciso vivência: uma merenda não é qualquer refeição; os suspiros são doces feitos de clara em neve com açúcar, cujo nome significa também um sussurro de saudades. O que dizer de Café com pão, pintura quase tautológica, em que estão representados um copo de café e um pão? (Em São Paulo dizemos “pão francês”, no Ceará é chamado de “carioquinha”, em referência carinhosa aos habitantes da cidade do Rio de Janeiro.)

        Esta instabilidade, este paroxismo que perpassam a obra da artista são significativos: para compreender a pintura, não basta um conhecimento letrado que decifra — arrogante e taxonomicamente — as iguarias representadas. Café com pão é muito mais que café com pão. Ao mesmo tempo, não são imagens “exóticas”, nem ao olhar estrangeiro, tampouco àquele de outras regiões do país. Mas conhecer os nomes será tão superficial quanto a superfície quase chapada da pintura, como se a artista estivesse propondo um jogo entre os objetos e o espectador, cuja compreensão depende também de uma experiência prévia, de afeto. Em outras palavras, Siebra parece fazer graça com a indiferença ou a “neutralidade” almejada pela arte ocidental, ou a suposta objetividade das naturezas-mortas. Alguém que não conheça o Brasil dificilmente conseguirá alcançar o significado mais profundo das pinturas e de sua atmosfera, ainda que estas não se apresentem como os costumes exóticos de um povo estranho. No entanto, o esmero com o qual se arruma a mesa da refeição permanece, assim como a sugestão da brisa fresca, que todos podemos sentir.

        Em sua pintura, Siebra usa tons terrosos que lembram o Siena, pigmento bastante utilizado durante o Renascimento (o nome faz referência à cidade italiana) que, quando cru tem uma coloração ocre e, quando aquecido, torna-se marrom avermelhado. Os sítios onde tradicionalmente se encontrava este composto de óxido de ferro e óxido de manganês estão exauridos, e este passou a ser produzido sinteticamente desde meados do século XX. Não deixa de ser interessante pensar que o extrativismo europeu arrasou também — e literalmente — uma de suas terras mais simbólicas.

        No Brasil, os tons terrosos podem fazer lembrar a recente destruição pelos dejetos lamacentos de mineração em cidades como Brumadinho, tragédia anunciada que custou a vida de centenas de pessoas. Foi também a mineração que, no século XVIII, destruiu a vida de milhares de outras pessoas, e construiu sobre seus corpos majoritariamente negros as cidades que hoje são consideradas “patrimônio da humanidade”, como Ouro Preto, Tiradentes, Mariana e Diamantina.

        As cores, no âmbito de uma sociedade colonial-extrativista, não são jamais isentas. Ao mesmo tempo, e apesar da violência, a região do Vale do Jequitinhonha, onde fica Diamantina, é um dos lugares mais importantes de produção cerâmica, de pessoas que inventam sua existência a partir do barro. Este imaginário também alimenta o trabalho de Siebra, por exemplo em Imbuzeiro, em que os braços da mulher e os galhos da árvore parecem ser feitos da mesma substância, esculpidos em argila mole de cor marrom-alaranjada, assim como o autorretrato da artista dialoga com alguns ex-votos de pescoço largo, feitos em cerâmica em vários estados do Nordeste.

        Assim, a cor da terra pode ser testemunho de uma profunda dor, mas também de vivências afetivas e de um exercício de liberdade, criação estética e emancipação a partir do barro úmido, fértil. Como nos vers
“Alegria de estar sentada na terra/ Do alto deste monte/ Espantando os insetos com cuidado/ Com muito calor por dentro e por fora/ Como há muito não acontecia,/ Minha beleza original/ Sem pressa de nada”.[7]

        bell hooks, no livro de memórias sobre sua infância — cujo título, Bone Black, faz referência ao pigmento preto obtido a partir da carbonização de ossos —, conta que em sua escola rural, os alunos vendiam ingressos para apresentações, a fim de levantar fundos, e que as pessoas ricas compravam muitos deles. Ela rememora que “a carne daquelas pessoas [brancas e ricas] é frequentemente a mesma dos porcos nos livros de histórias” e que as crianças aprendiam sobre cores com os crayons:

Aprendemos a diferença entre branco e cor-de-rosa e a cor que chamam de “cor de pele”. O giz cor-de-carne nos diverte. Como o branco, sua cor nunca se destaca no papel grosso que nos dão para desenhar, ou nos sacos de papel marrom no qual desenhamos em casa. A carne [“cor de pele”] que conhecemos não tem relação com a nossa, já que somos marrons e marrons e marrons como todas as coisas boas. E sabemos que os porcos não são cor-de-rosa ou brancos como aquelas pessoas-carne. [8]


        Para além da destruição das mineradoras, do garimpo e da colonização de maneira geral — inclusive em nosso imaginário —, os tons terrosos de que são feitas grande parte das pinturas de Siebra podem também significar os marrons de “todas as coisas boas”. O terreiro de terra batida sobre o qual se brinca de pau de fita, o barro que dará forma aos utensílios que filtram a água e a mantêm em temperatura agradável, o roçado de hortaliças e frutas que permite alguma autonomia a quem planta — nada mais distante do estereótipo modernista do “trabalhador brasileiro”: pobre, alienado, que sofre, e que seria dependente de tutela. Afinal, já dizia o carnavalesco Joãozinho Trinta: “quem gosta de pobreza é intelectual”.

        Se a sociedade em que vivemos é marcada por uma profunda violência, há também o amor, enquanto responsabilidade, respeito e conhecimento, daqueles que buscam fazer frente a este estado de coisas. É um trabalho cotidiano, que exige comprometimento e paciência. O amor de uma pessoa que tece renda de bilro para enfeitar a própria casa e também como fonte de receitas. Sentada na varanda, sentindo a brisa do mar.




[1] hooks, bell. “Artistas mulheres: o processo criativo” in Histórias das mulheres, histórias feministas: Antologia. São Paulo: MASP, 2019, p. 237, tradução de Ligia Azevedo. A citação da epígrafe está na página 236.[2] hooks, bell. Tudo sobre o amor. São Paulo: Elefante, 2021, tradução de Stephanie Borges. Na página 55, a autora afirma: “pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento”. hooks, numa triste coincidência, faleceu no mesmo dia em que conheci o trabalho de Paula.
[3] Idem, p. 50.
[4] TODOROV, Tzvetan. Éloge du quotidien. Essai sur la peinture hollandaise du XVIIe siècle. Paris: Points, 2009, p. 12.
[5] Idem, p. 110.
[6] Idem, p. 109.
[7] NASCIMENTO, Beatriz. “Rocio”. In RATTZ, Alex e GOMES, Bethânia (orgs.). Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento. Editora Ogum’s Toques Negros, 2015, p. 32.
[8] hooks, bell. Bone Black. Memories of Girlhood. Nova York: Henry Hold & Co., 1996, pp. 7-8.