Relicários do tempo e do lugar
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texto escrito na ocasião da exposição de Sara Costa, birô, 2024

Em certos momentos do dia, mal podemos distinguir certas cores umas das outras. Talvez fosse mais correto dizer que nos faltam palavras para descrevê-las, especialmente aquelas cores que banham o mundo nas horas de transição entre a tarde e a noite, ou entre a madrugada e a manhã. Ao vê-las, ainda que fiquemos um tanto desamparados de nomes para dizê-las, as sentimos na pele e nos ouvidos. Apesar da fragilidade das cores dessas horas – sempre prestes a mudar, anunciando o porvir –, guardamos conosco o frio gentil do nascer do dia, o mormaço das tardes e o silêncio das noites cravejadas de estrelas.

    É deste desejo de guardar a fugacidade da luz que parece surgir o trabalho de Sara Costa. Nascida em Juazeiro do Norte em 1998, formou-se em Artes Visuais em 2022 pela Universidade Regional do Cariri (URCA), mas iniciou seus estudos de maneira autodidata em 2016, ainda durante sua primeira graduação, em História. A partir de oficinas com Gabriel Ângelo e de aulas de pintura lecionadas por Ana Cláudia Assunção e Pablo Manyé, na URCA, Sara vai trilhando suas primeiras investigações e, apesar da presença de retratos e cenas de interiores ao longo do caminho, é a paisagem que impera – e brilha. Suas pinturas de pequenas dimensões, ora em tela, ora em madeira, convidam o espectador a vê-las de perto, estabelecendo uma relação imediata de intimidade. Nas palavras dela, “a minha pintura é muito impulsionada pela experiência da paisagem. Estar nesse ponto do tempo e espaço, nesse lugar.”

    A partir de pesquisas sobre a representação da luz na pintura e teoria da cor, Sara aproxima-se cada vez mais do Impressionismo, de seus antecessores e afluentes. Seu interesse vai de Corot e suas cores cozinhadas a Monet e Pissarro, cuja instabilidade da luz a motiva profundamente. Do Ceará, Costa cita com carinho Raimundo Cela e Assunção Gonçalves, confeiteira e pintora nascida em 1916, também em Juazeiro, com prolífica produção de paisagens. Para além desses nomes, contudo, há uma influência menos evidente, porém mais afetiva: Vincent Van Gogh, e sua relação com seus cadernos e diários.

    Sara, assim como Vincent, pinta aquilo que atravessa seu cotidiano e que se apresenta diante de seus olhos: os caminhos entre as cidades do Cariri cearense; as cidades vizinhas (como na pintura “Aba y Ara”, referência à cidade de Abaiara); o centro de Juazeiro, com seus passantes e sua feira. Arrisco dizer que há muito mais de Van Gogh no trabalho de Sara, especialmente naquilo que se refere às cores sem nome sobre as quais este pintor tanto escreveu em suas Cartas a Theo – cores estas cuja familiaridade conosco se dá na perpétua repetição da passagem dos dias. Este aspecto um tanto frágil e instável da paisagem é um grande motivador da pintura de Sara, como ela nos conta:

“Se eu passar por um lugar hoje, amanhã não estará igual. Isso está ligado à ocupação humana, e onde era natureza vira casa. (...) o que mais tem me movido atualmente é essa questão mais temporal, entendendo a paisagem como um organismo vivo”.

    É evidente a relação traçada por Sara entre pintura e memória, e sua dimensão testemunhal diante da realidade que nos circunda. Dessa atitude de guardar aquilo que lhe é caro, Sara Costa nos presenteia com suas “paisagens para não esquecer”. Resta-nos observá-las com a mesma amabilidade com a qual elas foram pintadas, sentindo na pele o vento brando de cada uma delas e a sutileza dessas cores trabalhadas com a delicadeza de quem é capaz de passar por uma paisagem e deixá-la ir.

– Paula Siebra, julho de 2024