A entrega da Terra

Túlio Stafuzza, 2020


“todo lugar é o limiar do mundo”
– Maria Gabriela Llansol


        Uma luz cumpre sempre o mesmo itinerário. Nasce em uma fonte, como se fosse um rio, e avança sua correnteza contra os objetos, os corpos e a paisagem. Encontra seu próprio fim no mar de matéria, tornando-a plenamente visível. Agora, por um momento, imaginem uma luz rebelde que entregasse ainda mais que seu límpido destino. Além de iluminar, faceira e brincante, começasse a amar aquilo que toca. Paula Siebra, através de suas pinturas, parece testemunhar justamente a história dessa luz que aprendeu a amar.

        São imagens comuns. Cotidianas. Paisagens e retratos nos quais o reconhecimento e a identificação vêm fácil. Para quem tem algum vínculo com a vida interiorana, é quase como visitar um álbum de fotografias familiar. Não um álbum que registrasse os sorrisos forçados e as poses falseadas, mas o que há de mais espontâneo em uma vivência corriqueira. As composições com elementos reduzidos resultam em uma imersão instantânea por parte do observador. Consequentemente, os primeiros sentimentos que afloram das pinturas são abraçados por uma intimidade antiga. Vemos objetos banais que habitam mudos nosso dia a dia. Vemos figuras entediadas e nos perguntamos se já não teríamos esbarrado com elas em nosso distraído caminho. Vemos paisagens e temos a certeza inexata de que ali já estivemos. Somos envolvidos. Enlevados por uma contadora de história hábil que se vale apenas do silêncio das coisas para nos levar à lugares subitamente indizíveis. Uma outra realidade é sugerida na qual a poesia corre solta, sem freios. E – aqui reside uma das magias da pintura – nos espantamos em perceber que esse lugar de afeto é o mesmo em que sempre estivemos.

        Toda essa intimidade nos é entregue sobre uma leve camada de poeira. Há uma amizade com os tons da cerâmica. As cores são trabalhadas sob uma atmosfera que remete à aridez. Como se um véu de areia tudo cobrisse. O resultado desse processo é que aquelas composições familiares ganham uma aura difusa. O que é próximo se enovela em uma distância quase onírica. Sentimos como se estivéssemos diante de uma memória que não pertencesse exatamente ao tempo. Há uma ambiguidade na experiência. Por fim, acabamos nos perguntando se não seria a própria vida um constante contraste entre proximidade e abandono.

        Outro aspecto que não passa despercebido quando pensamos o conjunto da obra é a fluidez com que aparecem retratos e paisagens. Podemos dizer que a artista pinta paisagens com a mesma intimidade com que pintasse o retrato de uma pessoa querida. Do mesmo modo, recupera nas figuras humanas a imensidão de um horizonte. Todas as coisas são tratadas com a mesma ternura. Estamos diante, portanto, de uma sabedoria que não desdenha de nada capaz de reluzir sobre a terra.

        Temos na obra de Paula Siebra o desvelar de um mundo em que a poesia não é um complemento, um adjetivo, mas a substância primeira das coisas. Assim, o real e o imaginado, o evidente e o sugerido, a memória e o presente se enlaçam numa única arrebentação.

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Túlio Stafuzza possui graduação em filosofia pela UFSCar (2010) e pós-graduação em Gestão Cultural pelo SENAC (2017). Poeta, lançou seu primeiro livro, “Livro dos Pássaros”, pela editora Urutau em 2018. Atualmente, atua também na área de artes visuais. Trabalha com produção e curadoria de exposições.