As primeiras coisas

Mateus Nunes, 2024




A Mendes Wood DM apresenta As Primeiras Coisas, uma exposição individual de pinturas de Paula Siebra. Siebra talha imagens primordiais de objetos, emoções e signos cotidianos que convidam o observador a imergir em contextos memoriais e reverberações líricas. Partindo de um laconismo inicial – refletida na concisão dos títulos e no aspecto aparentemente sintético dos elementos das pinturas – e devastadoramente diretas, cada imagem é incisivamente entregue como densos cristais capazes que podem levar eras para se dissolverem, memórias em seu estágio quintessencial. As pinturas de Siebra refletem sobre memórias coletivas, relações sociais, subjetividades e desejos humanos, todos embalsamados por uma atmosfera nostálgica e metafísica.

Ao identificar as coisas mais primordiais na imagem e na vida, Siebra desenha uma cartografia de retornos, pintando os lugares que visitou por circunstância ou memória, e se ancora enquanto encara sem cerimônia a acumulação dos movimentos abruptos da vida. As roupas recém-lavadas de volta à cama; as canetas que, organizadas, revisitam o bolso da camisa; os sentimentos aprisionados, selados num envelope e depois soltos no mundo. Embora alegoricamente apresentadas em cenas isoladas, as pinturas produzem um macrocosmo interconectado por meio de mecanismos afetivos e semiológicos. Do mesmo modo, enquanto comunicam a inescapável percepção pessoal da artista, as obras se refletem na postulação desejada de uma vontade representativa coletiva, em que o universal e o particular se amalgamam.

A assertividade semântica notável de Siebra não se limita à representação formal – se estende também à captura da essência poética de seus encontros com esses objetos que, de certa maneira, também se transformam em sujeitos. Em sua repetição diária, esses objetos vivos e íntimos se provam bastante valiosos por permanecerem constantes e enfatizados ao longo de um arco temporal dilatado. Apesar de alguns inevitavelmente terem suas origens a uma serialidade fabril, Siebra propõe uma individualização de objetos que irradia suas subjetividades, pois eles pertencem a alguém especial, com histórias intransferíveis, testemunha de uma vida sedenta por sins (“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim.”1).

Esse realismo inegável, nu e cru alimenta um poder imaginativo inesgotável, continuamente atraindo camadas de significados e profundidades à expressão poética de Siebra. Além disso, é crucial lembrar que a idealização e a fabulação narrativa de um objeto não anulam sua realidade subjacente. Em O Piano, a busca arquetípica da artista é tão impetuosa que produz um instrumento com cem teclas, talvez mais absoluto e memorável que o comum, com oitenta e oito. A dúzia excedente se apresenta como uma firme e profunda voz que atesta a verdade da imagem. As oitavas são estendidas, e as imagens de fascinação, prolongadas, assim como o cabelo dourado e ondulado que se espraia para além dos limites da cama dupla em Cochilo, a desenhar uma topologia onírica próxima a Dunas.

Nesse reservatório de substância – e em qualquer ordem em que essa essência se constitua –, Siebra elenca e produz essas cenas tomada por um sentimento de zelo: não apenas no sentido do cuidado físico, como na meticulosa organização da mala de viagem e do polimento dos sapatos de salto baixo, mas na estima das memórias indeléveis. É como se a artista estivesse constantemente colecionando algo perdido em meio a um mundo descuidado, “prometendo uma vida de calor e segurança”2. Esse esmero é transmitido pela investigação da melhor posição e da melhor luz que determinado objeto pode ter em uma composição, um lastro fornecido pela erudição extrema de Siebra na história da pintura e na tradição da natureza morta. Ademais, a artista enlaça conexões pessoais enquanto revisita seus pintores favoritos, como se organizasse suas afetividades numa caixa de ferramentas: a imagem primordial e a força da vida quase banal de Antonio Donghi, a centralidade mnemônica de Domenico Gnoli, os tons sutis e a luz cozida de Albert York, a cuidadosa disposição e a coexistência espacial de Giorgio Morandi.

Em discordância ao que uma teoria da imagem obsoleta defendia – que determinado artista era passivamente influenciado pelos artistas que o precediam –, Siebra prova a influência ativa: faz “uma escolha intencional a partir de uma série de recursos que lhe são oferecidos pela história de sua profissão”.3 Essa postura ativa também se opõe ao poder artificial da história da arte, da fabricação e da organização das coisas, o que faz com que sua pintura manifeste traços da experiência do lugar onde Siebra nasceu, Fortaleza, no Brasil, expandindo-a, no entanto, por meio de uma profunda erudição, rumo a visualidades constelares, convergindo contextos geográficos e históricos muito diferentes. É nesse tom que Siebra impregna a ficção com tanta realidade e a experiência vivida com tanta fábula que esse limiar se dissolve e é reconstruído, como um castelo de areia cambiante.

Com ambígua inesgotabilidade e possibilidades iconológicas, a pintora apresenta objetos particulares encharcados de sugestões poéticas. Uma maçã, por exemplo: o cuidado tomado em polir sua casca envolvida por um lenço, sua presença na cesta de frutas na mesa posta, o grato orgulho disposto à mesa da professora, sua silhueta erótica, a síntese do pecado original, o primeiro desejo. Não há, portanto, nenhuma tentativa de estabelecer uma ideia platônica das coisas – há, na verdade, o esforço de acessar o núcleo rígido da imaginação da pintora. Essas imagens cristalinas, puras na medida em que são frágeis, mostram o entrelaçamento, por parte de Siebra, da psicanálise e da construção de arquétipos imagéticos que flertam com suas potências inconscientes.

As pinturas de Siebra remontam o árduo e corajoso exercício de relembrar memórias distantes incrustadas no inconsciente: imagina-se o ato de se lembrar com tanta força, com os olhos bem fechados e a respiração presa, como se dar a luz a uma imagem que vem ao mundo como se parida em faíscas pelos ouvidos. Suas imagens são sutilmente materializadas em entregas diretas, sem mediações. Ao sentar-se à mesa cuidadosamente posta apenas para si mesma, abrir um caderno de desenhos para trabalhar e colocar uma flor na lapela, anuncia a determinação diária de encarar o mundo, a força de lidar com a beleza e a dor exorbitantes por meio de um ato modesto, como a dizer: “Mundo, eu estou aqui para sofrer por você. Para morrer de amor por toda e cada coisa. Eu estou aqui, sozinha, pronta. É comigo.”



[1] Clarice Lispector, A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 1998 (originalmente publicado em 1977). p. 21.

[2] Virginia Woolf, “Solid Objects” (1920) in Virginia Woolf, A Haunted House: The Complete Shorter Fiction (ed. Susan Dick). London: Vintage, 2003, p. 98, tradução livre.

[3] Michael Baxandall, Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 102.