O tempo e seus objetos
Nelson Macedo, 2019
Nelson Macedo, 2019
“...todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema.”
— Gaston Bachelard
— Gaston Bachelard
Quando jarros, igrejas, recantos de quarto, se tornam brinquedos, quando as cidades se tornam miniaturas e surgem como peças montadas de um passatempo, quando há uma exaltação do periférico da experiência, quando os objetos se apresentam emancipados do mundo real a que pertencem... então eles podem acolher outros atributos que não aqueles que carregam naturalmente. Essa emancipação retira do objeto os comprometimentos que são constituintes do modo tal como o concebemos e, livre desses condicionamentos, seu fundamento de realidade pode ser expandido.
Nesta exposição de Paula Siebra, a natureza do sentido presente nas pinturas vem motivada pelas reminiscências vivas que habitam a memória afetiva da artista. Os prédios, as casas, podem ruir, os objetos podem desaparecer fisicamente sob a ação do tempo, mas não as vivências que eles provocaram – estas estão presentes e ativas na sua intimidade e são justamente a matéria-prima de seu processo de criação. Os objetos nos quadros não existem, pois, como representações mentais, como objetos do pensamento, mas como referências afetivas dentre as que compõem seu imaginário pessoal.
Coerentemente, na realidade apresentada tudo é embrião, tudo é evocação; nada, em princípio, é apresentado de modo direto e objetivo. O mundo parece recuar, parece querer se esconder. Uma pátina encobre tudo como uma névoa, distanciando o acontecimento do observador e deixando rastros de um tempo perdido na memória.
Em contraposição, as configurações das áreas que abrigam os objetos surgem recortadas com clareza, com seus limites visivelmente definidos. Como cada objeto é apresentado no interior de uma configuração e a mesma possui sua própria identidade, para o espectador vão existir duas referências distintas, dois planos de sentido superpostos no seu campo visual.
Assim acontece porque em toda representação encontramos essa divisão interna entre o representado e o materialmente configurado, como duas dimensões de sentido independentes. Consequentemente, a superposição de referências surge como uma possibilidade objetiva de construção formal da imagem.
O campo visual se apresenta constituído por áreas de cor que surgem exaltadas em primeiro plano e que fazem recuar os objetos nas composições, os quais se mostram e são apresentados por fragmentos, exibindo de si mesmos o mínimo suficiente para serem identificados, sendo que, no limite, o que vemos são puras configurações vazias não representativas e que existem por si mesmas.
Esta ênfase sobre o fato formal das configurações denota uma afinidade visual com as paisagens de areia colorida nas garrafas do Nordeste, pois o padrão de representação é da mesma natureza. Esse artesanato tem origem justamente no estado do Ceará, terra natal da artista. Outra afinidade está na simplificação das figuras, que remetem para os bonecos de barro e os ex-votos da arte popular.
Em toda representação algo se mostra e algo se oculta, no entanto, aquilo que se esconde não está totalmente ausente da forma, está apenas dissimulado, encoberto, mascarado, sendo invocado de modo indireto. A verdade é que a experiência diante dos quadros denuncia um acontecimento que transcende os limites das telas e a natureza sugestiva da forma presentifica no plano imaginário essa realidade encoberta, mais do que o faria sua representação visual plena.
As obras aqui expostas não apresentam uma realidade banal, corriqueira, mas um lirismo visual que busca uma ressonância íntima no observador. Os elementos presentes nos quadros não se mostram como objetos inertes, antes são personagens de um acontecimento figurado. Nessas imagens o sonho conserva sua potência originária, pois o atributo principal do ato poético é justamente reencontrar a matriz original do sonho. Assim, o usual, o comum, participa da vida onírica, é um fato da imaginação – não existe mais como acontecimento prosaico.
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Nelson Macedo é pintor e ilustrador formado pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Ciência da Arte, pela Universidade Federal Fluminense. Atua como professor de desenho na Escola de Belas-Artes da UFRJ, desde 1989.
Nesta exposição de Paula Siebra, a natureza do sentido presente nas pinturas vem motivada pelas reminiscências vivas que habitam a memória afetiva da artista. Os prédios, as casas, podem ruir, os objetos podem desaparecer fisicamente sob a ação do tempo, mas não as vivências que eles provocaram – estas estão presentes e ativas na sua intimidade e são justamente a matéria-prima de seu processo de criação. Os objetos nos quadros não existem, pois, como representações mentais, como objetos do pensamento, mas como referências afetivas dentre as que compõem seu imaginário pessoal.
Coerentemente, na realidade apresentada tudo é embrião, tudo é evocação; nada, em princípio, é apresentado de modo direto e objetivo. O mundo parece recuar, parece querer se esconder. Uma pátina encobre tudo como uma névoa, distanciando o acontecimento do observador e deixando rastros de um tempo perdido na memória.
Em contraposição, as configurações das áreas que abrigam os objetos surgem recortadas com clareza, com seus limites visivelmente definidos. Como cada objeto é apresentado no interior de uma configuração e a mesma possui sua própria identidade, para o espectador vão existir duas referências distintas, dois planos de sentido superpostos no seu campo visual.
Assim acontece porque em toda representação encontramos essa divisão interna entre o representado e o materialmente configurado, como duas dimensões de sentido independentes. Consequentemente, a superposição de referências surge como uma possibilidade objetiva de construção formal da imagem.
O campo visual se apresenta constituído por áreas de cor que surgem exaltadas em primeiro plano e que fazem recuar os objetos nas composições, os quais se mostram e são apresentados por fragmentos, exibindo de si mesmos o mínimo suficiente para serem identificados, sendo que, no limite, o que vemos são puras configurações vazias não representativas e que existem por si mesmas.
Esta ênfase sobre o fato formal das configurações denota uma afinidade visual com as paisagens de areia colorida nas garrafas do Nordeste, pois o padrão de representação é da mesma natureza. Esse artesanato tem origem justamente no estado do Ceará, terra natal da artista. Outra afinidade está na simplificação das figuras, que remetem para os bonecos de barro e os ex-votos da arte popular.
Em toda representação algo se mostra e algo se oculta, no entanto, aquilo que se esconde não está totalmente ausente da forma, está apenas dissimulado, encoberto, mascarado, sendo invocado de modo indireto. A verdade é que a experiência diante dos quadros denuncia um acontecimento que transcende os limites das telas e a natureza sugestiva da forma presentifica no plano imaginário essa realidade encoberta, mais do que o faria sua representação visual plena.
As obras aqui expostas não apresentam uma realidade banal, corriqueira, mas um lirismo visual que busca uma ressonância íntima no observador. Os elementos presentes nos quadros não se mostram como objetos inertes, antes são personagens de um acontecimento figurado. Nessas imagens o sonho conserva sua potência originária, pois o atributo principal do ato poético é justamente reencontrar a matriz original do sonho. Assim, o usual, o comum, participa da vida onírica, é um fato da imaginação – não existe mais como acontecimento prosaico.
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Nelson Macedo é pintor e ilustrador formado pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Ciência da Arte, pela Universidade Federal Fluminense. Atua como professor de desenho na Escola de Belas-Artes da UFRJ, desde 1989.